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quinta-feira, 28 de junho de 2012

A escola e a construção da cidadania - o novo professor e o neo-esclarecimento

( Daniel Linhares Araujo da Silva )


A virada do século XX para o século XXI tem como fenômeno alarmante a busca por uma resignificação do conceito de cidadania. O termo que fora cunhado na antiguidade com a marca da tomada de consciência, em torno da participação ativa do cidadão visando a boa vida social, sofreu ao longo de séculos alterações conforme a cultura e a própria necessidade do indivíduo na sua procura por satisfação em viver e a sonhada dignidade.
A constante reflexão sobre a natureza da cidadania orienta para que esse termo tenha como pilar central a ideia de processo, o que delega ao cidadão um poder participativo crucial na construção do termo e, como as instituições devem participar com sua parcela de responsabilidade na cena social. Benevides  aponta que os cidadãos no regime democrático:
“não são apenas titulares de direitos já estabelecidos – mas existe, em aberto, a possibilidade de expansão, de criação de novos direitos, de novos espaços, de novos mecanismos. O processo, portanto, não se dá num vazio”.
Logo, se a cidadania tem como marca central o processo e a construção, e a mesma não se dá na passividade, mas na postura crítica e atenta a valores  fundamentais para o ser humano – uma vez que não há cidadania sem o reconhecimento de direitos humanos, sem a valorização do que o ser humano tem de mais precioso que é a sua individualidade, suas particularidades e autenticidade. Cabe perguntar, como se dará essa transição do conceito?, hoje tão urgente, visto que, se é um fenômeno, é um problema que cabe ao homem de hoje responder.
Talvez seja exagero, entretanto, o momento parece oportuno a um chamado, a construção universal de uma ideia ou movimento que  pode ser chamado pensado como um neo-esclarecimento. Em seu texto clássico  que reflete o ideal do ideário iluminista, no século XVIII, Kant apontou para o cerne da questão: o que é esclarecimento?
 “ Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio resposável. A minoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de um outro. O homem é o próprio culpado dessa miniridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá-lo sem a condução de outro”
Talvez, hoje, nosso desafio seja propor um neo-esclarecimento, no qual o homem do século XXI atinja sua maioridade ultrapassando a cidadania tal como vem sendo praticada, passiva – “aquela que é outorgada pelo Estado, com a ideia moral da tutela e do favor” . Somente superando este mote a cidadania será efetivamente construção e o cidadão criador de seus direitos.
Entender a cidadania e perceber o cidadão como criador de direitos é idealizar uma sociedade que visa a equidade, o respeito, a dignidade e a tolerância. São esses os ideais indispensáveis de um neo-esclarecimento e do cidadão do século XXI, que deve, por sua vez, sempre equiparar ou relativizar esses ideias com suas convicções políticas, religiosas, culturais, pois  nosso fenômeno da resignificação da cidadania é também uma busca de orientação ética.
Sem entrar no mérito das variadas correntes éticas, em especial o debate entre teleológicos e deotológicos, a carência de orientação ética atinge a própria cidadania quando deixa em suspenso o ser humano. Logo, atualmente, pensar num neo-esclarecimento é vislumbrar um processo de construção ativa e tomada de consciência de suas ações e o consequente reflexo no contexto social e que põe o ser humano acima de todos os interesses.
Destarte, na direção inversa de acontecimentos estapafúrdios que fazem com que o tema cidadania seja um problema e um fenômeno – como racismos, desigualdades de gênero, etnocentrismos, desrespeito à livre expressão da experiência estética, as descriminações pela opção sexual, identidade de gênero, a própria intolerância religiosa – faz-se necessária uma nova cultura onde a escola ocupa posição privilegiada.
Certamente a escola enquanto instituição política, de reprodução e manutenção da cultura e status quo, em muitas etapas do processo parece permanecer tão espantada, reflexo do estado de choque que atinge a própria sociedade. Mas se espera a resposta, seu aceno de transformação, a orientação que, não apenas multiplica nova cultura, mas a enraíza como paradigma.
É clichê a frase - “a escola é um microcosmo”,  porém, não inverídica, e isso se deve ao fato da escola ser o próprio lugar da diversidade e da sociabilidade. Na escola, desde a educação infantil, as diferenças se explicitam e desde então é necessário o trabalho da cidadania que percebe o outro e pede pela reflexão de como se deve agir, considerando que tudo que acontece no meio afeta também a cada um individualmente. Assim, a escola não pode trazer uma visão fixa do que seja a cidadania, mas promover aquela consciência crítica, que antes de emitir um juízo de valor, relativiza o fato à luz dos direitos universais do homem.
Nesta direção, o julgo do caráter, a aparência, a crença religiosa, nada disso seria um impeditivo ou fator segregador, pois se o ser humano é posto como fim, a educação cidadã deve fazer a justa apreciação. Essa educação deve perceber o quanto é infundado, o quanto se “mitologiza” as relações humanas, e orientar seus alunos e toda comunidade escolar a tornarem-se indivíduos autênticos, capazes de ingressarem em sua maioridade intelectual.
Necessita-se dessa educação e do professor atento a seu tempo e à necessidade de construção constante da cidadania. O professor mais do que um intelectual e independentemente de sua formação e do tecnicismo que o limita a sua disciplina, deve ser um anunciador desse processo. O professor antes de especialista deve fomentar a reflexão e, só assim, também, se dá o encantamento capaz de tocar a cada aluno.
Esse “toque” a verdade é o caráter mobilizador. Não se pode pensar que o professor é o único responsável pela completa mudança da sociedade. Isso seria transferir toda responsabilidade, que deve ser também assumida pelo Estado e pela família. Contudo, o professor é peça chave no processo a sua atuação alcança os indivíduos de tal forma que oferece visões para além da influência da mídia, da família ou religião. O que não tira a importância de quaisquer dessas instituições na construção da cidadania. Mas a escola é responsável pela abertura de novos habitus e campos existenciais  , mais que qualquer outra instituição social, sendo o professor um mestre que transmite conhecimentos e forma o cidadão.
Se a escola é então, espaço privilegiado, todos envolvidos no trabalho educativo necessariamente devem tomar parte no processo. Desde os funcionários com menor graus de instrução da escola, chegando aos gestores de todas as esferas. Todos devem se encarregar por combater toda intolerância, iniquidade e, lutar pelos direitos de todos terem direitos e assumir sua autenticidade. Deste modo, antes de qualquer intenção, a formação do ser humano e de sua capacidade crítica deve nortear o processo educativo.
Ora, se buscamos cidadãos melhores, que se permita a chance de se exercitar isso, incitando a participação, a convivência, o debate, a possibilidade da participação em todos processos deliberativos na comunidade escolar. Para que a escola se torne de fato promotora da cidadania, é preciso internalizar e praticar a cada dia aquilo que fora idealizado por Aquino : “escola é por excelência a instituição da alteridade, do estranhamento e da mestiçagem – marcas indeléveis da medida de transformabilidade da condição humana”.
Neste processo, torna-se indispensável a valorização das áreas humanas, em especial filosofia e sociologia, ainda oferecidas precariamente nos currículos. Espera-se, que para um neo-esclarecimento, tomemos cuidado e carinho para que nos cursos de formação de professor, desde a modalidade normal, o futuro professor perceba a cidadania como principal motivo da educação e lute para que a ordem não se inverta como vem acontecendo nos últimos anos. A educação escolar deve transmitir conhecimentos e conteúdos curriculares, bem como preparar para o mundo do trabalho, mas que não se perca sua essência que é a formação para a cidadania.

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